A Simplicidade dos Chinelo: Reflexões sobre Memórias e Significados
Na tranquilidade de um início de dia, a rotina matinal é marcada pelo perfume do café fresco, que invade o ar e anuncia a chegada de mais um dia. A cena é familiar: uma mãe que, para não perturbar o descanso de sua família, calça cuidadosamente seus chinelos e se dirige à cozinha. Esse ato cotidiano é a porta de entrada para um universo de lembranças que me transporta à minha infância e à simplicidade dos momentos que a moldaram.
Desde muito jovem, a imagem da minha mãe, Aracy, sempre presente, foi marcada por gestos de amor silencioso. Em uma ocasião, quando ainda era um menino travesso, quebrei acidentalmente um vaso de cristal após uma brincadeira com o Batman. Lembro-me de minha mãe levantando o chinelo em sinal de repreensão, mas ela hesitou. Em vez de punição, ofereci a promessa de que lhe substituiria o vaso. Sabendo que uma promessa infantil talvez não tivesse valor, acabei, depois de duas décadas, cumprindo minha palavra. A lembrança daquele chinelo suspenso e do vaso despedaçado permanece vívida em minha mente, um fragmento do passado que nunca apagarei.
Lembro-me também de ter um pequeno chinelo marrom que usava com carinho. Esse calçado poderia parecer comum, mas para mim, era quase uma extensão do meu corpo, assim como meu cachorrinho de plástico. No entanto, à medida que crescia, os pés se tornaram maiores e o brinquedo se perdeu na mudança de casa. Foi nesse mesmo período que meu pai trouxe para casa a primeira televisão colorida — um marco que transformou as tardes da nossa família.
Na telinha, uma das campanhas publicitárias que mais chamava minha atenção era a de chinelos. Um homem magro, de sorriso amigável e voz cativante, conhecido como Chico Anysio, promovia um modelo que garantia: “não deformam, não têm cheiro e não soltam as tiras”. É interessante notar que essa mesma marca era utilizada tanto por minha mãe quanto pela nossa queridíssima empregada, Dona Clarice, que vivia em Carapicuíba. Assim, assim como todos em casa, me rendi à popularidade daquele chinelo.
Entretanto, mesmo em meio a memórias de conforto, um ensinamento de minha avó Maria sempre ecoava em minha mente. “Nunca deixe o chinelo virado”, ela costumava dizer, ecoando uma crença popular que associava essa ação a desgraças. Embora eu tenha desconsiderado esse alerta algumas vezes, a falta que Maria e Aracy fazem em minha vida é imensurável, como um eco de preces não atendidas. E, para minha avó, que também usava seus chinelos, não sei se essa tradição ainda se aplica no céu.
O termo "chinelo" tem uma origem interessante no latim, derivando de "planella", que significa "plano" ou "achatado". Um ditado popular sugere que nada é mais leve que um chinelo de Havaianas, mas, para além das brincadeiras, a discussão sobre esse calçado simboliza algo mais profundo: os pés, como parte fundamental do corpo humano, são considerados na tradição como portadores da alma. Eles nos conduzem em nossa jornada e refletindo sobre isso, me percebo cada vez mais grato por cada passo dado.
Neste momento de reflexão, desejo que todos nós possamos começar não apenas o novo ano, mas também a nossa vida de maneira correta. Que possamos adotar uma perspectiva renovada, com os pés bem firmes na realidade e a mente e o coração voltados para o que há de mais elevado. Essa é a forma mais certa de avançar, seja com aqueles chinelos ou descalços.
Em suma, a simplicidade de um chinelo traz consigo um peso significativo. Não se trata apenas de um objeto; carrega histórias, memórias e significados profundos que, assim como a vida, merecem ser celebrados. Na dança do cotidiano, que possamos sempre valorizar as pequenas coisas e as lições que elas trazem, guiando nossa jornada com serenidade e propósito.

Deixe um comentário